Ottumwa: a cidade dos fliperamas

Às vezes, quando pensamos em termos como “eSports”, “cenário competitivo”, “FGC” e outros, imaginamos que toda essa cultura de competitividade é um fenômeno recente. Mesmo um gamer veterano porém desavisado às vezes pode achar que o videogame como competição séria surgiu há pouco tempo, seja por não acompanhar torneios e eventos similares de perto, seja por só agora ver o assunto ser amplamente discutido e noticiado até mesmo pela mídia não especializada.

Eu mesmo sou um dos que se aproximou do cenário competitivo muito recentemente: desde 2014 a EVO se tornou minha “Copa do Mundo” (já já a Capcom Pro Tour vira o meu “Brasileirão”, hehe), mas até então eu nem me dava conta de que torneios de videogame tivessem transcendido as pequenas iniciativas populares e passado a lotar estádios de futebol. Muito menos o fato de que esse fenômeno tem raízes bastante antigas e profundas na cultura gamer.

Eu sempre adorei a história dos videogames, mas acompanhar torneios e ler/ver coisas sobre eles me despertou recentemente uma vontade de conhecer mais dessa faceta da história que ainda não é tão abordada: como eram os primórdios dos eSports? Como os apaixonados por videogame competiam entre si em uma época que a internet sequer existia ou era uma tecnologia inacessível pelo grande público e as distâncias entre as pessoas eram muito maiores do que hoje?

Um pouco da origem dessa fascinante cultura pode estar em uma cidadezinha do interior dos EUA. Apresento-lhes Ottumwa: a capital mundial do videogame.

A Twin Galaxies e o placar internacional

Casa de arcade Twin Galaxies em Ottumwa, Iowa, EUA
Prefeitura da cidade… Nah, tô brincando. Mas é quase tão importante quanto. ;) — Fonte: Netflix

E nem sou eu que tô falando isso! Em 30 de novembro de 1982, Ottumwa foi proclamada The Video Game Capital of the World por Jerry Parker, então prefeito da cidade, dada a grande importância dos jogos digitais para os habitantes do local. E é muito fácil entender o porquê.

Sendo uma cidadezinha do estado do Iowa de pouco mais de 25 mil habitantes, Ottumwa é provavelmente o tipo de lugar onde todo mundo conhece todo mundo. Salvo engano da minha parte, geralmente locais assim não contam com tantas opções de lazer e entretenimento, então seus habitantes abraçam o pouco que têm com paixão e dedicação. E graças a um pequeno estabelecimento comercial chamado Twin Galaxies, calhou de ser os videogames.

Walter Day: o cara.

Walter Day era um grande apaixonado por jogos e pelas competições. Antes de abrir a Twin Galaxies, ele tinha o costume de circular pelas casas de arcade da região e coletar as pontuações dos melhores jogadores que encontrava. Em um dado momento, já com a Twin Galaxies aberta, o barbudo e alguns de seus amigos (que eram funcionários dessa casa de arcades) resolveram tornar a coisa mais profissional, bolando uma maneira de oficializar os recordes registrados e estimular a competição entre os gamers.

Assim surgiu o Twin Galaxies International Scoreboard, placar mundial dedicado a catalogar e ranquear pontuações de competidores dos mais diversos games de arcade daquela época.

Eram os anos 1980, um período em que a internet como conhecemos hoje ainda engatinhava. Dada essa limitação tecnológica, ainda não existia o conceito atual de multiplayer, com duplas ou times de jogadores se enfrentando, muito menos fazendo isso online. Por isso o meio mais comum de competir era tentar obter mais pontos do que os outros competidores — de preferência sem perder nenhuma ficha, é claro — e colocar suas iniciais no topo da tela.

Esse panorama geral moldou a maneira como o Twin Galaxies International Scoreboard foi concebido, administrado e mantido em seus primórdios: agindo como juiz das disputas e sempre acompanhado de alguns funcionários da Twin Galaxies que serviam de testemunhas, Walter estabelecia regras, acompanhava as partidas e registrava as pontuações obtidas por qualquer um que desejasse participar. As pontuações eram então organizadas em listas e expostas em um grande banner na parede da sala principal da Twin Galaxies, para todo mundo ver.

Com o tempo a repercussão cresceu a ponto de o grande placar internacional criado por Walter também ser publicado nas revistas de videogame da época.

Página de revista com o placar geral de agosto de 1982
Página de revista com o placar geral de agosto de 1982. — Fonte: Twin Galaxies

Fazendo jus ao nome, o Scoreboard aceitava placares de fora do país também: jogadores dispostos a deixar sua marca compravam suas próprias cabines do seu jogo favorito e jogavam o máximo possível para tentar bater o maior recorde, sempre gravando tudo em videotape. O pessoal da Twin Galaxies recebia centenas de fitas VHS de diversas partes do mundo e um dos funcionários era responsável por assistir a TODAS ELAS e a comprovar a autenticidade dos placares registrados.

Imagine aí a trabalheira pra homologar a porra toda!

Robert Mruczek, um dos juízes da Twin Galaxies, recebendo uma das fitas VHS para avaliação
Robert Mruczek, um dos juízes da Twin Galaxies, recebendo uma das fitas VHS para avaliação. Você realmente achou que o Brasil ficaria de fora? — Fonte: Netflix

Com o passar dos anos a coisa foi se modernizando. O que antes era uma pequena casa de fliperamas que mantinha um modesto placar se tornou uma grande organização que existe até hoje, registrando recordes e mantendo seu badalado placar vivo e atualizado, além de promover torneios, desafios de quebra de recordes e eventos de eSports em todo o mundo. A Twin Galaxies se tornou tão respeitada que hoje ela atua como parceira dos mantenedores do Guiness, sendo responsáveis por homologar e registrar façanhas dos jogadores no famoso Livro dos Recordes.

Algumas personalidades de Ottumwa

Mas nada disso seria possível sem que existissem as pessoas mais importantes de todo esse cenário: os jogadores. Com toda sua modéstia e paixão pelos fliperamas, a cidade de Ottumwa acabou conseguindo ganhar suas próprias celebridades nesse meio!

O próprio Walter Day, com seu icônico uniforme listrado de árbitro, se tornou uma dessas personalidades importantes. Seus feitos pela comunidade gamer agora são reconhecidos mundialmente e ele foi até mesmo homenageado no filme Detona Ralph (Disney, 2013), através do carismático personagem Stan Litwak.

Stan Litwak, dono da casa de fliperamas onde acontecem as aventuras do filme Detona Ralph, da Disney.
Stan Litwak, dono da casa de fliperamas onde acontecem as aventuras do filme Detona Ralph, da Disney.

Outro grande nome digno de nota é ninguém menos do que Tim McVey. Ele era um pacato garotinho que adorava frequentar a Twin Galaxies e que um belo dia resolveu jogar um certo jogo com o qual até então absolutamente ninguém se importava, chamado Nibbler.

Lançado no mercado em 1982, Nibbler era um dos poucos videogames produzidos pela Rock-Ola, uma empresa especializada em fabricar aquelas máquinas de música “jukebox” que vemos nos filmes. Nele o jogador controlava uma cobrinha que percorria um labirinto cheio de “comidinhas”, ficando cada vez maior a cada comidinha devorada.

Pense nesse jogo como uma mistura de Pac-Man com o jogo da cobrinha do celular Nokia 3310.

Tela do jogo Nibbler.
Tela do jogo Nibbler.

Do ponto de vista competitivo, Nibbler tinha um grande diferencial: três casas numéricas a mais em seu contador de pontos. Diferente dos outros jogos da época, que permitiam atingir um milhão de pontos, Nibbler foi o primeiro jogo a permitir até um bilhão como pontuação máxima. Até então nenhum jogador de Ottumwa havia conseguido atingir essa marca — mesmo o melhor competidor até então só havia conseguido cerca de 700 mil pontos.

Em 15 de janeiro de 1984, motivado por uma promoção da Rock-Ola, o jovem Tim resolveu tentar superar essa marca. Após uma maratona de jogo que durou cerca de 40 horas seguidas, Tim conseguiu a façanha de 1.000.042.270 pontos no Nibbler. Ottumwa acabara de ganhar um cidadão considerado o campeão mundial de videogame de seu tempo! O jovem e tímido garoto foi aclamado como herói, recebendo a Chave da Cidade das mãos do próprio prefeito e até mesmo levando para casa sua própria máquina de Nibbler, como prêmio concedido pela Rock-Ola.

Desde então Ottumwa comemora o Dia do Tim McVey, todos os anos no dia 28 de janeiro (podia ser no dia 15 mesmo, né? Enfim…).

Tim McVey sendo condecorado por Walter Day pelo recorde de 1 bilhão de pontos no jogo Nibbler
Tim McVey (à esquerda), sendo condecorado por Walter Day pelo recorde de 1 bilhão de pontos no jogo Nibbler — Fonte: Netflix

Histórias e mais histórias

Aprender sobre Ottumwa e descobrir essa e outras histórias sobre um cenário competitivo que atravessa décadas é realmente incrível! Isso inclusive me faz pensar sobre como os jogadores faziam para se organizar, se divertir e estabelecer competições e disputas de videogame em outros lugares do mundo ao longo dos anos. Considerando a maneira fascinante como a cultura dos games nasceu e se desenvolveu aqui no Brasil, imagino quão bacana seria se a história do eSport brasileiro fosse mais conhecida e documentada.

Enquanto isso não acontece, podemos aprender mais sobre as competições ao redor do mundo… começando, é claro, pela própria Ottumwa. Existem dois documentários na Netflix que serviram como inspiração e base de estudo para esse meu texto e que aproveito para recomendar. Se você gostou de ler as linhas acima e ficou fascinado por essas histórias, pode assistir a esses filmes e descobrir muito mais coisas bacanas a respeito.

Um deles se chama The King of Kong: A Fistful of Quarters e conta a história cheia de rivalidades do cenário competitivo do clássico arcade Donkey Kong da Nintendo. O outro se chama Man vs Snake: The Long and Twisted Tale of Nibbler, que conta de forma mais aprofundada a história do jogo Nibbler, do jovem Tim McVey e de como décadas depois, aos 40 anos, ele precisou sair de sua aposentadoria e defender seu título (SIM, alguém conseguiu bater o recorde de 1 bilhão de pontos do Tim)!

Em ambas as produções, creio eu, evidenciam-se o valor da pequena cidade de Ottumwa e da Twin Galaxies para os protagonistas dessas fascinantes histórias, bem como sua grande importância para as raízes do esporte eletrônico mundial.

Ah sim! É possível acompanhar todo o trabalho da Twin Galaxies através do seu site oficial, em twingalaxies.com.

[Texto publicado originalmente
no meu Medium.]