O jogo A Nova Califórnia – disponível na Steam; produzido por Tainá Felix, produtora cultural e desenvolvedora na Game e Arte – é uma adaptação para os games do conto humorístico de mesmo título de Lima Barreto escrito em 1910.
Só isso já torna o jogo bastante interessante: como adaptar uma obra literária para os jogos? Há diversos jogos famosos inspirados em obras literárias (todos os jogos sobre mitologia grega baseados na Teogonia de Hesíodo ou as infindáveis adaptações de Tom Clancy’s que a Ubisoft enfia goela abaixo da comunidade de games todo ano), mas é interessante ver a adaptação integral de um texto literário brasileiro para um jogo.
Na verdade, para além de uma adaptação, o jogo até expande esse curto universo trazendo uma forma especial de lidar com a literatura nos games e intensificando a literatura visceral de Lima Barreto.
Sobre Lima Barreto
Lima Barreto é um autor pré-modernista, negro e carioca que viveu por 41 anos na virada do século XIX para o século XX. Nasceu nove anos antes da abolição da escravidão e faleceu alguns meses depois da Semana de Arte Moderna, representando em seus contos uma verdadeira vanguarda das tendências literárias que regeram a arte moderna sob o ponto de vista de um homem negro vivendo no Brasil recém-saído da escravidão e da Monarquia.
Contrariando estatísticas, Lima Barreto consegue avançar em seus estudos apesar de ter nascido de uma família sem acessos aos direitos básicos e convivendo com todas as dificuldades de ser negro em um país intensamente marcado pela escravidão. Além dos dramas sociais, a família de Lima Barreto foi acometida de questões de saúde mental que o obrigou a abandonar seus estudos na Escola Politécnica quando era adolescente, voltando-se ao trabalho para sustentar a família. Abandonando o sonho de tornar-se engenheiro, passa a viver e sonhar com a vida de literato.
Autor de livros famosos como Triste Fim de Policarpo Quaresma e Recordações do Escrivão Isaías Caminha (na minha visão, uma autobiografia de sua tragédia) Lima Barreto é um autor que convive diariamente, de forma trágica e solitária, com as dores de ser negro num Brasil estrutralmente racista. Se hoje em dia ainda convivemos com o racismo velado ou explicito, imaginem há menos de uma década da abolição quando os efeitos da escravidão não foram diluídos pelo tempo?
As doenças dos pais e a introspecção desconfiada de Lima Barreto são próprias de uma pessoa marcada por viver em um mundo branco que limita os espaços que os negros podem ocupar, mesmo sabendo das suas infinitas capacidades e possibilidades. O sonho de ser um literato, sofreu com a sabotagem racista e uma consequente auto-sabotagem de um homem negro vivendo nesse país racista.
Isso faz pensar em quantos talentos não morrem diariamente por conta das violências estruturantes do Brasil.
Sobre o Jogo
Em termos de jogabilidade, A Nova Califórnia é um “walking simulator” feito no RPG Maker, mas que não contém nenhum aspecto de um JRPG comum como a famosa engine nos conduz a imaginar o design dos jogos. O jogo nos guia a partir de minigames dividos em três atos de três a quatro fases cada (totalizando 11 fases) que nos ajudam a conhecer os personagens e compreender a realidade em que eles se encontram.
Seu personagem é o botânico Bastos, o farmacêutico da cidade às voltas com os empecilhos de fazer seu negócio crescer e tornar-se rico em uma cidade pequena e sem muitos clientes. Porém, na primeira cena você é um simples ladrão de ossadas no cemitério. O jogo alterna entre duas facetas da vida do personagem: o honesto e respeitado farmacêutico de Tubiacanga e o violador de tumbas mascarado junto com mais dois companheiros misteriosos.
Os minigames são simples e não exigem muita habilidade de alguém experiente em jogos, além da memória nos momentos em que você é o farmacêutico honesto, da memória dos pontos do conto (por isso, creio, é necessário ler o conto para platinar o jogo) ou habilidades furtivas quando você é o violador de tumbas da noite. Nestes minigames você tem desafios simples que podem ser terminados rapidamente (vitória burocrática) ou mais elaborados para cumprir o desafio completo (ganância doida) e platinar o jogo.
O maior ganho desse jogo é expandir o universo do conto. O jogo consegue transformar um conto de sete páginas em um jogo de 1h30min (pelo menos o meu tempo de jogo buscando platinar. Talvez seja menos tempo) que te guia pelos personagens e pelo cenário de Tubiacanga, te colocando na pele do protagonista e outros personagens da história que, pelo tamanho do conto, não foram devidamente explorados.
Para mim a melhor experiência para jogar é ler o conto e depois jogar o jogo. O jogo pressupõe que o jogador tenha lido o conto porque ele, de certa forma, introduz os personagens e o mundo, mas ao mesmo tempo conduz a história de forma a ajudar o jogador a reconhecer os personagens do conto no jogo. Talvez eu esteja aqui sobrepondo a minha experiência ao jogo, acho que jogar o jogo é se deixar ser surpreendido por essa história.
Talvez a ordem dos fatores não altere o produto. Siga seu coração, mas a experiência completa envolve fazer as duas coisas: ler o conto e jogar o jogo.
Segundo a autora: Tainá Felix
“Sobre a ordem de ler o conto e depois jogar, creio que isso mude de pessoa para pessoa. Tem uma questão intergeracional também, as crianças que não leram ainda o conto e jogam primeiro, ficam curiosas para lerem o conto depois de jogarem. Já os jovens adultos e adultos que conhecem Lima, ficam curioses pra saber como fizemos essa tradução intersemiótica para a linguagem dos jogos digitais.”
De qualquer modo, o jogo expande o universo do conto. Conhecemos mais os personagens, as mecânicas do jogo tentam conduzir os protagonistas (e obviamente quem joga) por situações que são rapidamente resolvidas no conto e cada ação nos ajuda a conhecer mais da cidade e dos personagens.
Além disso, alguns aspectos presentes na obra de Lima Barreto em geral – e de forma velada no conto – são mais abordados nessa expansão da história feita pelo jogo. Como, por exemplo, a forte e contraditória relação entre colonialismo e modernidade e o pensamento social brasileiro na literatura pré-moderna.
Ainda sem os métodos próprios de análise da sociologia ou com instrumentos da história, os literatos pré-modernos – do Realismo do século XIX até o modernismo de 1922 – ficaram marcados por tentarem construir histórias e ficções baseadas nas realidades vivenciadas em suas vidas, buscando descrever o cotidiano visto e vivido como verdadeiros cronistas.
É possível perceber que a literatura fugia de elaborações estéticas pomposas e buscava ser um instrumento para dar voz à realidade como ela se apresentava aos sentidos. Tentavam reproduzi-la nos textos literários que chegam até nós como fotografias de tempos passados. Uma fotografia que a história, geografia e a sociologia do século XX no Brasil eram ainda incapazes de prover por ainda estarem presas a explicações e métodos teóricos puramente estrangeiros que pouco ou nada explicavam da nossa realidade.
E essa descrição da realidade era fundamental no momento de transição que nosso país passava. O Brasil da década de 1910 era um país que ainda estava vivendo, de certo modo, os traumas de transitar de um império escravista para uma limitadíssima república há menos de 30 anos. Para onde foram todos os racismos que sustentavam a escravidão recente? E todas aquelas tradições que permeavam o mundo colonial, como a relação com nobrezas e fidalgos ou a forte influência católica no cotidiano, para onde foram?
Nenhuma dessas estruturas sumiram de uma hora para outra, como os relatos históricos as vezes dão a entender. Na verdade, muitas delas continuam perniciosamente definindo os valores, imaginários e estruturas sociais do Brasil até hoje (principalmente o racismo).
Por isso, este trabalho narrativo da literatura é importante para trazer à tona os acontecimentos desse momento de transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna no Brasil com o toque visceral da experiência cotidiana afetada pelas contradições, equívocos e hipocrisias estruturais de um país que vira as costas para seu povo.
Lima Barreto, autor negro e periférico que viveu essa pré-modernidade brasileira em toda sua crueldade, nos legou interpretações do Brasil que nenhum intelectual do período foi capaz de oferecer. Mesmo entre os literatos, a posição social e racial de Lima Barreto nos oferece uma visão menos idealizada e romantizada de como a sociedade brasileira se configurava naquela época.
Semelhante a Carolina Maria de Jesus ou a Conceição Evaristo, o “planeta fome” (e aqui é fome de tudo: comida, afeto, reconhecimento…) torna-se uma infeliz inspiração para as mais argutas análises sociais daquele Brasil que começava a andar com as próprias pernas.
Joguem A Nova Califórnia e leiam autores e autoras negras!
A Nova Califórnia
Desenvolvedora: Game e Arte
Publisher: Game e Arte
Plataformas Disponíveis: PC (Steam)