Antes de mais nada um pequeno adendo, em prol da transparência: eu conheço e sou amigo de um dos profissionais envolvidos na produção da obra resenhada neste texto. Apesar de esse detalhe inspirar desconfiança para algumas pessoas – e não nego que elas têm certa razão em pensar assim -, acredito que tenho plena capacidade de analisar a obra sem deixar que minha amizade com tal profissional influencie no meu senso crítico.
Se você, que está lendo isso, confia nesta minha capacidade, espero que a leitura deste texto lhe seja agradável.
Uma coisa que aprendi quando comecei a ler quadrinhos é a incrível capacidade que eles tem de refletir a sociedade na qual eles são produzidos e inseridos. O mito dos super-heróis criado pelos comics dos Estados Unidos vem do ideal do Sonho Americano e da mentalidade esperançosa e otimista da época dos Baby Boomers. Os traumas e horrores nucleares vividos pelo povo japonês influenciaram na presença marcante de personagens com grandes escalas de superpoder, do cyberpunk e de diversas outras características intrínsecas aos mangás.
Quando se trata de quadrinhos criados em nosso país, esse fenômeno com certeza se mantêm. Várias são as obras da nona arte influenciadas de um jeito ou de outro pelo contexto social, político e econômico brasileiro. Recentemente eu tive a chance de pôr as mãos em Zikas: mais um exemplo desse tipo de obra, que usa de maneira inteligente acontecimentos recentes como pano de fundo para contar histórias bem divertidas!
Em uma versão alternativa da cidade de São Paulo, onde seres mágicos de fantasia medieval convivem em uma sociedade similar à do nosso mundo real, vive Barone: um orc malandro e safo que sonha em melhorar de vida ao se tornar um grande Zika – espécie de mercenário e faz-tudo que resolve problemas para quem puder pagar e que goza de certa fama. Enquanto isso não acontece, ele ganha a vida trabalhando em um barzinho na periferia e aturando a encheção de saco do seu chefe mal-humorado, o gnomo Jay. Volta e meia o anão Muralha, melhor amigo de Barone, aparece com algum trabalho mirabolante para ajudar seu brother a se tornar o maior Zika do reino e os dois embarcam em aventuras estrambólicas, que de vez em quando envolvem a orquisa cabeleireira Latiffa, que é quem quase sempre salva a pele do Barone quando a situação aperta!
É um mundo muito louco, onde shopping centers são masmorras, onde elfos, anões, trolls e outras criaturas curtem funk ostentação juntos e onde você pode comprar sua geladeira novinha em 12 vezes sem juros nas Casas Beholder. Um mundo inspirado por uma cidade que muitos só conhecem graças a TV, a internet, aos noticiários e a cultura de massa, mas que se torna muito familiar a todo mundo que vive nas periferias de qualquer grande cidade brasileira.
E é justamente ao contar com essa familiaridade que Zikas brilha!
Zikas nasceu como uma websérie e atualmente é vendida em dois volumes de pouco menos de 100 páginas, com 4 histórias cada, sob o selo Dracomics, da Editora Draco. Ao longo de suas histórias, vemos Barone e cia. lidarem com situações que ora nos fazem esboçar um sorriso no rosto – como quando nos lembramos do Trenzinho Carreta Furacão – ora nos lembram de como a vida na perifa pode ser uma merda pra quem não tem oportunidades – como na passagem em que Barone, empolgado para se tornar um Zika de respeito, cai na besteira de fazer um trabalho para a Milícia Pública pra “expulsar uns vagabundos de um prédio abandonado”, apenas para perceber que a verdade é bem mais triste e cruel do que tentam nos fazer acreditar.
O roteiro das histórias, escrito por Alessio Esteves e Raphael Fernandes, tem uma pegada leve e agradável, que consegue equilibrar bem o senso de humor movido a memes de internet, referências à cultura pop e zoeira de situações do cotidiano da periferia com as críticas certeiras a todos os perrengues pelos quais muitos de nós temos que lidar em nosso dia a dia como sociedade.
Desde incômodos simples como a baldeação no busão lotado, passando pela discriminação contra os jovens mais pobres e seus rolezinhos, à violência policial promovida por uma instituição mais preocupada com limpeza étnica e social do que em verdadeiramente proteger e servir ao cidadão e à mentalidade elitista de uma parcela da população que só pensa no próprio umbigo e não no bem comum: nenhum assunto escapa incólume pelas páginas de Zikas.
Ao terminar de ler os quadrinhos, ilustrados por Junior Ferreira (no volume 01, que tem toda uma pegada mangá) e por Silveira Junior (no volume 02, com um estilo mais cartunesco, escrachado e nonsense), fiquei imaginando como seria interessante se Barone, Latiffa, Muralha e Jay resolvessem fazer um mochilão e viajar para outros reinos. Talvez fosse bacana ver esse universo fantástico se expandindo e mostrando com seu bom humor característico como esses intrépidos personagens lidariam com a realidade e as dificuldades de lugares inspirados em outras regiões do Brasil.
Se eu, que sou potiguar e moro em uma cidade a quilômetros de distância de São Paulo, já me identifiquei pra caramba com muitas situações retratadas nesses quadrinhos, imagino o quão fascinante seria se a turma de Zikas tentasse a sorte aqui na minha terrinha, por exemplo. Aposto que a Latiffa e o Jay adorariam tomar um bronze na praia de “Ponta de Lança Negra”, enquanto o Barone e o Muralha provavelmente bateriam de frente com os velhos senhores feudais que há décadas parasitam a política local.
Zikas é uma série divertida e competente, com ideias interessantes, personagens carismáticos e muita palhaçada, mas que sabe falar sério quando precisa e tem bem mais a dizer ao leitor do que piadinhas de internet. Recomendo muito a leitura desses dois volumes e fico na torcida para que surjam mais missões, aventuras e trapalhadas desse fascinante quarteto.
Afinal, Barone ainda tem um longo caminho pela frente se quiser mesmo se tornar o maior Zika que o mundo já viu. E o Brasil – seja ele real ou fantástico – é grande e cheio de histórias pra contar!
[Texto publicado originalmente em 23 de agosto de 2018 no site MobGround.]