Tudo começou com um punhado de vídeos no YouTube. Uma ideia na cabeça, uma câmera na mão, um orçamento de vaquinha entre amigos e, depois de um tempo, um episódio piloto dividido em 3 partes sobre uma sociedade que divide seus cidadãos entre os “do lado de lá” – cheios de luxos e riquezas – e os “do lado de cá” – oprimidos pela pobreza e pela falta de oportunidades. Separando-os, estão os responsáveis por um rígido processo de seleção que prometia a uma parcela ínfima da população menos abastada a melhorar de vida, passando para o outro lado caso bem-sucedidos.
Foi com essa premissa que 3%, série criada por Pedro Aguilera, deixou boa parte dos internautas brasileiros – eu incluso – impressionada em meados de 2011. Como praticamente tudo que envolve arte no Brasil, as coisas não foram fáceis para Aguilera e sua equipe de lá pra cá: todas as 10 emissoras de TV das quais eles bateram a porta recusaram sua proposta para a produção da série. Depois de uma petição de míseras 36 assinaturas, parecia que o sonho de uma ficção distópica criada no Brasil morreria… até ser salvo pela Netflix, que em março de 2016 anunciara a realização do projeto como uma de suas séries originais.
Hoje, 3% é uma realidade que dividiu opiniões do público e da crítica. No texto de hoje resolvi externar a minha.
Rumo ao Maralto
Agora com o apoio de uma gigante do streaming de TV, 3% ganha novos e interessantes ares, ao passo que ideias que existiam apenas como vagos conceitos no antigo piloto de 2011 assumem uma forma mais bem definida, a ser desenvolvida ao longo de seus oito episódios. Replicando a ideia do tal piloto, o primeiro episódio – intitulado Cubos – nos apresenta com uma maior riqueza de detalhes o universo onde se passa a trama: um imenso deserto pedregoso onde outrora costumava ser a Floresta Amazônica, no qual se situa a base de operações do famigerado Processo.
Também conhecemos alguns protagonistas da trama: Michele (interpretada por Bianca Comparato), Marco (Rafael Lozano), Fernando (Michel Gomes), Joana (Vaneza Oliveira), Rafael (Rodolfo Valente) e outras centenas de jovens de 20 anos de idade se preparam para o teste de suas vidas e marcham pelas ruas e favelas do Continente em direção ao local do Processo. Ao chegarem, são recepcionados por Ezekiel (vivido por João Miguel), responsável por coordenar as provas físicas e psicológicas aos quais os candidatos serão submetidos.
O restante do capítulo inicial mostra de forma mais expandida as ideias que vimos nos vídeos do YouTube: as impiedosas entrevistas introdutórias, a prova da montagem de cubos e o início do que parece ser uma relação complexa entre todos esses e outros personagens da trama, enquanto lutam para conquistar seu lugar entre os ínfimos 3% da população que supostamente gozam de uma vida melhor do lado de lá.
Altos e baixos
Acho que o sentimento que eu tive ao assistir 3% não é fácil de descrever com poucas palavras, não sendo fácil pra mim simplesmente dizer que “gostei” ou que “não gostei”. Percebo aqui uma grande ideia de uma história distópica, com inspirações claras em muitos conceitos bacanas, mas que infelizmente – talvez por ser a primeira iniciativa bem-sucedida nesse sentido e pela falta de outro referencial que não sejam as obras de autores estrangeiros (daí as inevitáveis comparações com Jogos Vorazes, Battle Royale, Divergente e outros vistas internet afora) – careceu de uma maior polidez e qualidade em muitos detalhes narrativos e técnicos.
Em muitos momentos 3% realmente me conquistou com seu universo diferente e cheio de potencial: o primeiro episódio me manteve curioso para saber o que mais estava por vir, mas ao meu ver o ponto alto da série é o quarto episódio: Portão.
Nele, os cinco protagonistas e mais algumas dezenas de candidatos são trancafiados em uma sala isolada do restante do complexo, sem água, sem comida e com quase nenhuma comunicação com Ezekiel e os demais organizadores do Processo. Momentos depois os ânimos se exaltam a ponto de haver uma divisão entre os indivíduos, culminando com a formação de uma gangue – liderada por Marco – que resolve oprimir os participantes restantes, roubando-lhes o pouco de comida que eles ainda conseguiam guardar, com a desculpa de estarem procurando uma saída de seu cárcere.
Percebe-se aqui inspirações não apenas na famosa Caixa de Skinner como também em uma versão rudimentar do Experimento da Prisão de Stanford, bem como uma grande evolução no background de alguns dos personagens mais marcantes da trama até então (especialmente Marco).
Entretanto, não só este como todos os oito episódios da série são marcados por falhas difíceis de ignorar, por maior que seja nossa boa vontade ao assisti-la: a despeito de se tratar de uma Série Original Netflix™ as atuações insistem em soar como fruto da “escola Rede Globo de dramaturgia”, com falas excessivamente pausadas e artificiais, diálogos pouco inspirados (um problema do qual infelizmente nem mesmo artistas veteranos como João Miguel escapam) e até mesmo cenas de sexo dignas de novela das 9 que, se não forem de fato gratuitas, pouco se esforçam para se justificar na trama.
O figurino não chega a ser um problema e é até bastante criativo, casando bem com o ambiente asséptico do local do Processo. A alta tecnologia disponível no ambiente também é muito bem representada, com telas brancas e amplas, hologramas pra todo lado e interfaces de usuário bem inventivas, mas contrastando com tudo isso, alguns objetos exibidos em certos momentos e locais davam a impressão de que a devastação da Floresta Amazônica foi provocada por uma guerra cuja vencedora foi a Tupperware!
Reclamações injustas?
Para o bem ou para o mal não há sombra de dúvida de que, por seu histórico e pela própria natureza de seu conteúdo, 3% se tornou um marco para a dramaturgia brasileira e para a cultura pop de uma forma geral. É evidente que a série precisa melhorar em muitos pontos (vários dos quais não listados nesse texto), ainda mais sabendo que nós somos verdadeiramente capazes de fazer melhor: após assistir a grandes obras como Cidade de Deus, Tropa de Elite e a série Contos do Edgar (produzida pela Fox e também disponível na Netflix. Recomendo com força!), a atuação e os diálogos de 3% realmente incomodam, só para citar este exemplo.
Mas ao mesmo tempo acredito que seria um tremendo desserviço simplesmente apedrejar essa iniciativa. Os envolvidos nessa produção não a fizeram como fizeram de sacanagem e certamente estão cientes das falhas cometidas, ao mesmo tempo em que comemoram seu sucesso e o fato de que a Netflix realmente acredita na empreitada (pois sim, 3% foi renovada e receberá uma segunda temporada).
Por trás do baixo orçamento e das falhas pontuais, 3% elenca temas importantes e extremamente atuais para nós brasileiros, como as desigualdades sociais, a falácia da meritocracia e os terríveis momentos históricos do passado recente de nosso país (a atmosfera brilhante e reluzente da trama não tornou menos tenebrosa a cena em que Michele é torturada em um pau-de-arara).
Este é, afinal, o objetivo definitivo de toda boa ficção científica: usar uma visão do futuro para falar sobre o passado, sobre o presente e sobre nós mesmos.
“Você é o criador do seu próprio mérito”
Termino então esse texto fazendo um pequeno apelo: tente ao máximo despir-se de quaisquer preconceitos e assista 3%, nem que seja para ter propriedade pra falar mal… ou bem… ou o que quer que você queira falar. É normal que novas iniciativas sejam imperfeitas em sua primeira tentativa e é das críticas que surgem as bases para se criar trabalhos melhores, por isso cada feedback que se ecoa pode ser extremamente benéfico para o futuro da série.
No mais, torço para que 3% sirva de incentivo para o nascimento de novas histórias. Asimovs, Clarkes e Gibsons são sempre muito bacanas, mas é inegável o fato de que precisamos de mais Pedros Aguileras.
3% (3 Porcento)
Autor(a): Pedro Aguilera
Disponível em: Netflix
Início: 2016 – Término: 2020
4 Temporadas.
Texto de minha autoria publicado originalmente
em 19 de dezembro de 2016
no site Mob Ground.