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Dandara e o Brasil que emerge das rachaduras

O Brasil é um enigma que a nossa produção cultural nunca conseguiu desvendar. Entre ser o país do futuro, com enormes potencialidades, e a vanguarda do atraso, preso a itinerários coloniais, o nosso destino enquanto nação se perde nas vazias simbologias do patriotismo e na censura sistemática das verdadeiras expressões do nosso povo. No final, acho que o problema da nossa identidade não é a diversidade e sim a exclusão.

Trabalhar com uma ideia profundamente inclusiva seria uma forma de forjar nossa identidade nacional em melhores bases e, na minha singela percepção das coisas, Dandara – jogo da Long Hat House, disponível para tudo que você imaginar – consegue realizar alcançar essa visão.

Estou extrapolando as mensagens do jogo? Pode ser! Mas os desenvolvedores, João Brant e Lucas Mattos, afirmam em entrevistas que não investiram em diálogos por uma inabilidade na escrita de roteiros. Porém, no podcast do Noiz, afirmam que esse seria um recurso para abrir as interpretações que possam sair do jogo.

Eu, particularmente, vou utilizar essa ideia para poder “meter o louco” e colocar aqui uma parte das reflexões que jogar Dandara me proporcionou acerca do enigma brasileiro.

A cabeça pensa onde o chão pisa

A movimentação é o elemento marcante do jogo. Fugindo dos padrões, você não se movimenta livremente e sim pulando de plataforma em plataforma, nos colocando na situação de pensar criativamente nossa estratégia para lidar com os desafios que chegam e a falta de liberdade para lidar com eles.

Por isso, considero muito feliz uma interpretação feita pelo André, do Jogabilidade, quando ele comenta sobre a mecânica de movimentação como uma referência às limitações impostas à criação e renovação da vida no contexto brasileiro de opressão sistemática contra mulheres, negros e LGBTQIAPN+ num Brasil erigido sobre a marca da violência.

Ao mesmo tempo, é dentro das brechas abertas pela pressão dos sistemas opressores que as saídas mais criativas e encantadoras surgem. Assim surgem e resistem tecnologias genuinamente brasileiras de lidar com a opressão e buscar a liberdade como a capoeira, o candomblé, a umbanda, o samba, o funk, a cultura indígena. Percebo em Dandara um elogio dessa nossa capacidade de emergir das rachaduras com algo novo e vivo, resistindo contra e existindo mesmo diante da cotidiana pulsão de morte que caracteriza nosso presente colonial.

O Sal da Terra e os estúpidos acúmulos

Dandara é um jogo sobre o Sal, sobre a sua captura por uma entidade maligna que deseja controla-lo (Eldar) e sobre a heroína negra capaz de recuperá-lo. Em vários relatos espalhados pelo jogo é possível ver o desespero dos habitantes em proteger o Sal da sanha dominadora e homogeneizante de Eldar, grande vilão do jogo, e a memória do que foi feito com essa energia espalhada e explorada de forma diversa e sustentável.

Assim como a cultura brasileira, o povo do mundo de Dandara conseguia criar várias coisas diferentes com o Sal mas, após a intervenção de Eldar, o sal passa a ser dominado por um único e sobram apenas as lembranças ancestrais buscando outros meios de serem preservadas até serem salvas do esquecimento completo por Dandara.

A cultura brasileira é também diversa e também continua sendo bastante reprimida pelas estruturas que oprimem o povo desse país (capitalismo, colonialismo, patriarcado, racismo etc). Tudo parece indicar uma analogia à histórica pulsão de morte que permeia a história brasileira presente no apagamento físico e simbólico da nossa diversidade.

Mesmo a antropofagia, citada na forma e no conteúdo em todo o jogo, pode ser lida como um instrumento desse apagar das referências negras, indígenas e femininas em um Brasil eminentemente racista e misógino.

O próprio Eldar é um homem branco (cor de ouro, na verdade), engravatado, com síndrome de “white savior” por acreditar que sabe o que é melhor para o Sal e toda a criação e, por isso, deseja controla-la para usufruir melhor de suas capacidades mágicas que, segundo ele, estavam sendo mal aproveitadas pelo povo do mundo de Dandara. Verdadeira analogia da cegueira eurocêntrica que condena nosso país à constante opressão.

Como a Audre Lorde fala: “a gente é mais forte quando não tenta que as pessoas sejam iguais, e nem ‘tolera’ as diferenças, mas sim se encontra na diferença e a celebra, destaca”.

Infelizmente, o Brasil ainda passa longe de realizar esse sonho médio de tolerância e máximo de respeito e acolhimento da sua própria diversidade. Como diria Elis Regina, cantando Querelas do Brasil de Aldir Blanc, o Brazil está – na verdade – matando o Brasil e Dandara se apresenta como uma denúncia viva e interativa dessa estupidez.

Dandara: Trials of Fear Edition

Desenvolvedora: Long Hat House
Publisher: Raw Fury Games
Plataformas disponíveis: PC, PlayStation 4, PlayStation 5, Xbox One, Xbox Series, Nintendo Switch, iOS, Android

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